quarta-feira, abril 05, 2006

Pele

"Era um dia como todos os outros, ali pelas 6 da tarde de inverno, em que o sol se escondeu já, e a lua tem frio demais para entregar a sua luz ao mundo...

Ela estava no sofá, enrolada pelo cobertor mais quente da casa, num encontro confortável entre o seu corpo, as fibras de lã que desenhavam ovelhas e a consciência agradável que os seus sentidos lhe davam de uma casa vazia.
Num instante, o pensamento invejoso trouxe-lhe memórias de um outro tempo em que o conforto e o sono não eram as ovelhas que traziam mas vinham embalados por uma voz grave e uns braços que abrigavam o mundo.
O vazio complicou.
Nesse momento, a intrusão do pensamento fê-la desejar, e o desejo perturba, fê-la sentir falta e saudade de um tempo em que percorria diariamente uma fisionomia que não a sua, uma pele mais grossa com um sabor e cheiro diferente de tudo o que provara até então e quis demorar-se mais uma vez nessa pele... lembrou-se de como era bom saber de cor os detalhes de um alguém, de como era bom adivinhar um olhar e encontrá-lo embaraçado ao confrontá-lo com o seu, lembrou-se de todas as vezes em que um sorriso vindo destas memórias lhe inundava os lábios no autocarro e lembrou-se de como sentia os outros olharem-na como um ser estranho...

No seu cotidiano ia atravessando um caminho diferente, um que não era cruzado por muitos alguéns cuja fisionomia valesse a pena decorar e cuja pele fosse importante percorrer e descobrir.

Caminhava todos os dias, sem olhar para trás mas, nesse dia igual a tantos outros, desejou perturbada que no seu futuro próximo encontrasse um alguém para descobrir, percorrer e decorar, num encontro de olhares e peles que a inundasse do calor que o cobertor já não oferecia."